PARECER SOBRE ANTEPROJECTO DE LEI DA IMIGRAÇÃO

 

 

 

Na generalidade

O presente anteprojecto de lei da imigração visa estabelecer um novo quadro jurídico para regulação da entrada, permanência, saída e afastamento de cida­dãos estrangeiros do território nacional, procedendo simultaneamente à trans­posição para o ordenamento jurídico nacional de um conjunto de directivas em matéria de imigração a que Portugal se encontra obrigado por força dos com­promissos comunitários.

 

Em primeiro lugar, há que reconhecer que, de um ponto de vista formal, em relação à lei actualmente em vigor, este projecto apresenta maior clareza e melhor sistematização, facilitando a consulta e a interpretação da lei, com todos os benefícios que daí resultam para os cidadãos.

 

Em segundo lugar, de um ponto de vista material, podemos considerar que algumas das alterações propostas tornam o novo regime mais favorável à inte­gração dos cidadãos estrangeiros na nossa sociedade, com especial destaque para a uniformização dos títulos de entrada e permanência, e correspondente uniformização do estatuto jurídico dos respectivos titulares, bem como para o novo regime do reagrupamento familiar.

 

Porém, constatamos igualmente que este anteprojecto de diploma mantém o sistema de contingentação de oportunidades de emprego como forma de limitar a concessão de vistos de residência para exercício de actividade profissional subordinada (artigo 59º), sistema que a CGTP-IN sempre criticou e recusou, considerando que a política de gestão de fluxos migratórios deve fundar-se, primeiro, essencialmente em critérios humanistas e não passar por soluções puramente economicistas que encaram o trabalhador imigrante como peça descartável e, em segundo lugar, pela monitorização do mercado de trabalho combatendo a precariedade e o uso abusivo de mão de obra ilegal.

 

Assim sendo, a CGTP-IN defende uma política de gestão de fluxos migratórios que assente, não num sistema de contingentação, mas na regulação do próprio mercado de trabalho.

 

Por outro lado, verificamos também que dentro do novo regime proposto não é dada resposta a duas das questões que a CGTN-IN considera como funda­mentais neste domínio, designadamente:

-        A regularização de todos os cidadãos estrangeiros que actualmente traba­lham, ou já tiveram uma relação de trabalho, e que efectuam (ou efectua­ram) os devidos descontos para fins fiscais e para a segurança social, mas que não dispõem de título válido de permanência em território nacional;

-        O combate ao trabalho clandestino e ilegal de trabalhadores imigrantes e à exploração patronal sem penalização dos próprios trabalhadores, ou seja sancionamento das entidades patronais que empreguem trabalhadores em situação ilegal sem repatriamento automático dos trabalhadores.

 

No entender da CGTP-IN, sem resolução destas duas questões essenciais (para as quais aliás apresentamos propostas na especialidade) difi­cilmente será possível ter uma política de imigração e de gestão dos fluxos migratórios responsável, humanizada e dignificante, tendo em vista a integração de todos aqueles que pretendem fixar-se no nosso país.

 

De facto, é muito difícil entender como é possível fazer uma lei que pretende regular a entrada de imigrantes e facilitar a fixação dos que forem admitidos num quadro de dignificação da sua situação, sem atender à situação de todos aqueles que já se encontram no nosso território e dos quais o Estado, inclusi­vamente, aceita o pagamento de contribuições e impostos.

 

Finalmente, e ainda no contexto de um certo favorecimento da integração dos cida­dãos estrangeiros, não podemos deixar de referenciar como fundamental a necessidade de alterar profundamente as práticas das autoridades e dos nos­sos serviços administrativos no seu relacionamento com os cidadãos imigran­tes, no sentido de, por um lado, tornar esse relacionamento mais humano e, por outro, de simplificar, desburocratizar e desonerar procedimentos e práticas.   

 

Em conclusão: sem prejuízo de considerarmos que o presente anteprojecto corresponde uma alteração significativa de algumas das orientações que têm vigorado em matéria de imigração e dá alguns sinais positivos no sentido de favorecer a integração dos imigrantes, entendemos que o regime proposto é ainda insuficiente para a afirmação de uma política de imigração e de gestão dos fluxos migratórios humanizada e capaz de garantir os direitos de todos aqueles que já hoje trabalham, ainda que em situação irregular, ou pretendem trabalhar e fixar residência em território nacional.

 

 

 

 Na especialidade

1)     Recusa de entrada (artigo 33º)

Esta disposição estabelece, no seu nº1, um novo motivo de recusa de entrada por razões de saúde pública, determinando ainda (no nº3) que pode ser exigido ao cidadão estrangeiro a realização de um exame médico.

Atendendo a que a exigência de um exame médico interfere com o direito à privacidade e à intimidade da vida privada, que são direitos fundamentais e como tal só podem ser limitados ou restringidos nos termos em que a Constituição o admite no seu artigo 18º, entende­mos que as circunstâncias e os casos em que este exame médico pode ser exigido têm que estar clara e objectivamente definidos na lei, não podendo tal decisão ser deixada à discricionariedade das autoridades competentes. 

 

2)     Obrigações dos transportadores (artigos 41º a 44º)

Estas obrigações estão essencialmente relacionadas com a recolha, tratamento e transmissão de dados pessoais dos passageiros, pelo que se situam no âmbito das disposições constitucionais e legais que regulam a protecção de dados pessoais e lhes devem conformidade.

 

Além disso, tratando-se de matérias relativas à protecção de dados, a Comissão Nacional de Protecção de Dados deve ser consultada, nos termos dos artigos 22º, nº2 e 23º nº1, alínea a) da Lei 67/98, de 26 de Outubro.

Por outro lado, gostaríamos de ver esclarecida a razão pela qual somente as transportadoras que prestam serviço por via aérea ficam adstritas às obrigações previstas nos artigos 42º a 44º, e não tam­bém as que efectuam serviço de transporte marítimo e terrestre.

        

3)     Visto de estada temporária para exercício de actividade profissio­nal subordinada de carácter temporário (artigo 56º)

 

Este é um novo tipo de visto de entrada temporária, claramente dirigido à imigração puramente temporária, que não permite a fixação de residência.

O regime deste tipo suscita no entanto algumas dúvidas designadamente:

-       Como se define o carácter temporário da actividade profissio­nal a exercer – apenas pela duração do contrato ou pela natu­reza da própria actividade e, neste segundo caso, quem ou de que forma se determina se uma actividade tem ou não natu­reza temporária;

-       A concessão deste tipo de vistos aparentemente não se encon­tra sujeita a qualquer contingentação de oportunidades de emprego – qual a razão desta diferenciação relativamente à admissão de trabalhadores com visto de residência para exercício de actividade profissional subordinada;

-       Como se justifica a excepção prevista no nº4 deste artigo 56º (e atenção que a lei não define o que se entende por contrato de investimento para este efeito e deveria fazê-lo no artigo 2º).

 

4)     Visto de residência (e autorização de residência) para exercício de actividade profissional subordinada (artigos 59º e 88º)

A concessão deste tipo de visto é subordinada ao contingente de oportunidades de emprego anualmente fixado nos termos do artigo 59º, nº2, tendo também em conta um princípio alargado de preferên­cia nacional e comunitária.

Como já referimos na parte inicial desta apreciação, a CGTP-IN dis­corda frontalmente deste sistema de quotas ou contingentes. Aliás, não se compreende a insistência neste modelo reconhecidamente falhado.

Por outro lado, a concessão deste tipo de visto continua estreita­mente ligada à existência de contrato de trabalho; assim sendo o trabalhador imigrante mantém-se na mais completa depen­dência da sua entidade patronal no que toca à permanência regular no país, o que tem efeitos perversos, nomeadamente aumentando os riscos de chantagem e exploração por parte de empregadores sem escrúpulos.

Note-se que mesmo a aparente abertura consubstanciada na alínea a) do nº4 do artigo 59º continua a exigir «uma manifestação indivi­dualizada de interesse da entidade empregadora», o que na prática equivale a uma promessa de contrato de trabalho ainda que informal.

Finalmente, e no que toca à concessão de autorização de residência, a CGTP-IN propõe que, nos termos do artigo 88º, poderia e deveria abrir-se uma possibilidade de concessão desta autorização, com dispensa de visto de residência, aos cidadãos estrangeiros que comprovassem a integração efectiva no mercado de trabalho, através de um certo número de anos de contribuições para o fisco e a segurança social ou de prova feita com intervenção de associação sindical, associação empresarial ou de associação de imigrantes ou de apoio a imigrantes acreditada junto do COCAI.

.      

5)     Condições gerais de concessão de autorização de residência tem­porária (artigo 77º)

A recusa de concessão de autorização de residência por razões de saúde pública levanta algumas dúvidas, designadamente quanto à exigência de exame médico.

Em primeiro lugar, não se esclarece em que circunstâncias pode ser exigida a realização de exame médico. Recorde-se que a realização obrigatória de um exame médico contende com direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, pelo que os fundamentos e condi­ções que a justificam devem obedecer aos requisitos constitucionais de restrição de direitos fundamentais e estar claramente enunciados na lei, não podendo ser deixados à discricionariedade da administra­ção pública. Esta discricionariedade parece agravada quando se diz que os exames médicos não devem ter carácter sistemático – sendo assim, quem e com base em que critérios/fundamentos decide da sua realização aleatória?

Por outro lado, quem requer uma autorização de residência já reque­reu e obteve previamente, na generalidade dos casos, um visto de residência. Sendo o visto de residência o título de entrada em territó­rio nacional, não será mais lógico que as preocupações e cuidados com a saúde pública surjam nesse momento? Quem requer uma autorização de residência, já está no país, já cumpriu uma série de exigências e formalidades, de certo modo já se fixou, já tem uma relação de trabalho ou está a frequentar um estabelecimento de ensino, e só neste momento é que se alegam razões de saúde pública para recusar a residência?

Esta solução não parece nem muito lógica nem minimamente justa, até porque o requerente pode ter contraído a doença após a entrada em território nacional.

  

6)     Direitos do titular de autorização de residência (artigo 83º)

A Constituição da República, no seu artigo 15º, estabelece um prin­cípio geral de igualdade de direitos e deveres entre o cidadão portu­guês e o cidadão estrangeiro residente em território português.

Neste contexto, a enumeração de um conjunto de direitos de que gozaria o cidadão estrangeiro portador de uma autorização de resi­dência pode ser redutora daquele princípio constitucional, por sugerir que os direitos que lhe assistem são apenas estes.

Por outro lado, os direitos atribuídos ao titular de autorização de resi­dência nos termos do artigo 83º do anteprojecto são diferentes e mais reduzidos do que os previstos no artigo 133º para os residentes de longa duração, sob a epígrafe «igualdade de tratamento» – suge­rindo que a igualdade de tratamento se aplica apenas a quem tem estatuto de residente de longa duração e também que os cidadãos com este estatuto gozam de mais direitos do que os titulares de auto­rização de residência, como está implícito no facto de os direitos enumerados neste caso serem mais e melhor densificados, isto ape­sar de a nossa Constituição não fazer qualquer distinção.

Salvo melhor opinião, a CGTP-IN entende que estamos perante uma eventual violação do princípio constitucional estabelecido no artigo 15º CRP.

       

7)     Visto de residência e autorização de residência para exercício de actividade de investigação ou altamente qualificada (artigos 61º e 90º)

O visto de residência para exercício de actividade de investigação ou altamente qualificada (e a correspondente autorização de residência para o mesmo fim) são títulos novos de admissão e fixação em terri­tório nacional e visam promover a entrada deste tipo de trabalhado­res.

Embora este objectivo seja compreensível, não podemos deixar de notar a chocante diferença de tratamento entre trabalhadores estran­geiros que pretendam exercer uma simples actividade profissional subordinada e estes outros altamente qualificados. Para estes tudo é facilitado, todas as portas se abrem. Ou seja temos trabalhadores estrangeiros de 1ª e de 2ª classes, o que é completamente inaceitá­vel num estado de direito.

Por exemplo, no que toca aos trabalhadores altamente qualificados ou investigadores não se condiciona a sua vinda às oportunidades de emprego nem sequer se exige o cumprimento do princípio da prefe­rência nacional e comunitária, o que aliás nos parece contraditório com o objectivo (quanto a nós óbvio e fundamental) de incentivar a permanência, e mesmo o regresso, dos nacionais que exercem acti­vidades de investigação e altamente qualificadas predominantemente no estrangeiro, precisamente porque em Portugal escasseiam opor­tunidades de emprego nestas áreas.  

 

8)     Autorização de residência a vítimas de tráfico de pessoas ou de auxílio à imigração ilegal (artigo 109º)

A CGTP-IN propõe a extensão da aplicação deste regime aos traba­lhadores estrangeiros em situação ilegal, cuja entidade patronal os tenha aceite ao serviço, com conhecimento de que não estavam autorizados a exercer uma actividade profissional no país, e tenha aproveitado esta sua situação irregular para lhes oferecer condições de trabalho, designadamente no que respeita a níveis salariais e tempo de trabalho, inferiores aos mínimos definidos na lei ou no ins­trumento de regulamentação colectiva aplicável. Esta seria uma forma de impedir o repatriamento automático dos cidadãos estrangei­ros nestas condições, que está implícito na disposição do artigo 198º.