Em que medida a ausência de dois parentes pobres da organização e gestão das empresas, como o são a formação profissional e a formação em segurança e saúde no trabalho, contribuíram para o acidente em Lamego que vitimou mortalmente 8 pessoas? Não sabemos... Sabemos, no entanto, que estas matérias foram, sistematicamente, esquecidas por entre toda a profusão regulamentar aplicável ao sector do fabrico de pirotecnia. Infelizmente, não é caso virgem... A empresa de Avões cumpria tudo com rigor, ao que se diz... Mas não podia cumprir o que a legislação do sector não exigia: Considerar a formação dos trabalhadores e de outros operacionais, como um dos requisitos de qualidade, para o trabalho no fabrico pirotécnico!

acidente lamegoNão existe “segurança” sem formação “em segurança”

Foram diversas as personalidades, ligadas à polícia, protecção civil ou autarquia, que referiram que a fábrica de Avões em Lamego cumpria todas as regras, sendo sujeita a vistorias sem conta.

A questão que se coloca é a seguinte: E as regras aplicáveis, são as mais adequadas?

Como em qualquer organização laboral, a perigosidade e risco de ocorrência de acidentes resulta, sempre, da manifestação de um binómio inexorável: elementos materiais / trabalhador. Uma faca numa gaveta não tem qualquer perigo, uma faca manuseada de forma incorrecta, pode matar!

Isto é, as instalações, os meios de trabalho, as matérias-primas, as ordens de serviços, as regras e procedimentos de trabalho, entre outros elementos materiais ou organizacionais, quando vistos em abstracto, podem estar todos na maior das conformidades. Contudo, a verdadeira conformidade só é testada quando a estes elementos se junta o elemento humano.

Coloquemos um ser humano, sem preparação, sem competências adequadas, sem cultura organizacional ou sem os conhecimentos exigidos, em contacto com a mais perfeita organização material, que daí surgirão, de forma inevitável, os riscos associados aos perigos potenciais da actividade em causa.

Se tratarmos de uma fábrica pirotécnica, podemos dizer que, a estrutura material mais cumpridora das distâncias, dos métodos de armazenamento, transporte e fabrico, quando operada por trabalhadores com competências insuficientes ou desadequadas, daí resultará um surgimento/aumento dos riscos associados à manifestação do perigo potencial da actividade pirotécnica: a explosão. E porquê?

É simples: para podermos usufruir da segurança potencial dos elementos materiais de que dispomos, temos de possuir as competências adequadas para operar com e no meio desses mesmos elementos. Caso contrário, não só não usufruiremos das vantagens potenciais em termos de segurança, como podemos mesmo, causar o surgimento de novos riscos antes imprevistos.

A formação do trabalhador, no sentido de se moldarem as suas competências profissionais, moldando-as às condições materiais em que opera, constitui o mais importante dos factores de segurança. Quando abordamos a problemática da formação profissional e das competências em matéria de segurança e saúde no trabalho, o que é mais importante: um trabalhador com cultura de segurança num ambiente material adverso, ou um trabalhador sem cultura de segurança, num ambiente material confortável? Os dois, diríamos.

Pois, mas um trabalhador com cultura de segurança num ambiente material adverso pode recusar trabalhar, pode denunciar e queixar-se, pode tentar proteger-se e proteger os seus colegas.... E assim poupar vidas perdidas por acidente de trabalho.

No entanto, ao contrário, um trabalhador sem cultura de segurança num ambiente material confortável tornar-se-á um elemento de desestabilização ambiental, incumprindo regras (mesmo que por negligência) de segurança, o que não deixará de produzir os seus efeitos em matéria de acidente de trabalho.

Chegados aqui, podemos questionar: O que terá falhado em Lamego?

A legislação aplicável

À fábrica de Lamego, em primeiro lugar, são aplicáveis as regras do Código do Trabalho que prevêem o direito à formação profissional, no montante de 35 horas anuais. O que sabemos é que apenas 11,6% das microempresas nacionais ministraram, em 2014, formação aos seus trabalhadores.

Por outro lado, a Lei 102/2009 que regula a prevenção em matéria de segurança e saúde no trabalho, prevê o direito á formação nesta área, adequada ao posto de trabalho e funções do trabalhador. Mas, como esta formação é normalmente prestada no âmbito das 35 horas anuais de crédito do código do trabalho, podemos daqui retirar que apenas um número muito baixo das 11,6% das microempresas que ministraram formação aos seus trabalhadores, o terão feito na área da segurança e saúde no trabalho.

Conclusão, muito poucas microempresas – e não só estas, sublinhe-se – ministram formação em SST aos seus trabalhadores.

Será que o fizeram ao abrigo da restante legislação aplicável ao sector? Não parece. Vejamos o que diz a legislação específica aplicável ao sector, quando analisadas as exigências relativas à formação dos trabalhadores e outros operacionais (que, nestas empresas, muitas são os próprios patrões):

O Decreto-Lei n.º 139/2002 que aprova o Regulamento de Segurança dos Estabelecimentos de Fabrico e de Armazenagem de Explosivos, apenas exige formação ao responsável técnico, não fazendo a mesma exigência aos trabalhadores.

O Decreto-Lei n.º 265/94 que Transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 93/15/CEE, relativa ao requisito de segurança de explosivos, como qualquer “boa” normalização técnica, estabelece requisitos para os materiais (explosivos), para os auditores e auditorias e para os processos de fabrico, armazenamento, entre outros. Encontramos requisitos de qualidade em detalhe e profusão. Contudo, esqueceram-se dos trabalhadores que aplicam os explosivos. Assim, não encontramos neste diploma qualquer exigência relativa à formação dos trabalhadores na aplicação das exigências de qualidade que determina. Esquecimento imperdoável, podemos dizer.

Já o Decreto-Lei n.º 303/90 que aprova o regime de fabrico, armazenagem, comércio e uso de artifícios pirotécnicos também não refere qualquer exigência em matéria de formação profissional enquanto requisito de fabrico, comércio...

Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 376/84 que aprova os Regulamentos sobre explosivos, também prevê quase tudo relativamente à componente material do licenciamento da actividade, mas nada sobre as pessoas que comas essas componentes materiais interagem.

Poderíamos continuar por aí fora... Nem uma palavra sobre formação de trabalhadores?

Será caso virgem no ordenamento jurídico nacional? Será caso virgem no sistema de qualidade nacional? Será caso virgem na organização das actividades económicas em geral?

Não! A verdade é que:

A parte mais desprotegida da relação laboral, o trabalhador, é não raras vezes esquecido na organização das actividades económicas. E é esquecido porque, os diversos regimes de licenciamento, regra geral, não colocam exigências relativamente à preparação dos trabalhadores, nem à sua consulta, nem à sua informação;

A formação profissional, enquanto elemento de valorização e dignificação profissional, porque diz respeito apenas aos trabalhadores, constitui um dos parentes pobres do sistema de regulação das actividades económicas, do emprego e do trabalho, o que é próprio de um país que ainda não faz da excelência das competências dos trabalhadores que possui, um factor decisivo da sua competitividade;

A segurança e saúde no trabalho, porque apenas respeita aos trabalhadores, porque são eles que são as maiores vitimas e quem mais danos sofre, continua a ser o parente pobre das gestões das organizações;

Conclusão: dois direitos laborais, fundamentais para a vida de qualquer trabalhador, como o são a formação profissional e a segurança e saúde, quando juntos e aplicados, podem transformar o mundo no local melhor. Quando sistematicamente esquecidos, transformam o melhor dos espaços, num mundo mais miserável.

Podem agora, os esquecidos do costume vir dizer: “não se sabe em que medida a ausência de formação profissional em segurança e saúde no trabalho contribuiu para o acidente de Lamego”. Não sabemos, é verdade! Mas sabemos que a falta de formação profissional e de formação em segurança e saúde no trabalho constituem requisitos básicos, racionais e verosímeis de um mundo mais seguro e mais desenvolvido. E foi isso, também, que faltou em Lamego!

Não é possível construir um trabalho seguro sem o envolvimento, passivo e activo, dos trabalhadores, e essa é uma lição a retirar da tragédia de Lamego, sob pena de as mortes, em causa, serem em vão!