A introdução das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação no domínio do trabalho, levando ao que se chama de "Digitalização do Trabalho", está a ser utilizada como um factor de agravamento das condições de Segurança e Saúde dos trabalhadores e da sua exploração, com gravosos impactos sociais à vista. O que é feito do principio: "O desenvolvimento tecnológico deve promover a humanização do trabalho"?
I – Da "Agenda Digital" da EU à transformação das relações laborais
A integração das novas tecnologias nas nossas vidas é tão irreversível quanto profunda, afectando todas as dimensões da nossa existência.
Uma das dimensões que se encontra em profunda transformação é o trabalho humano. Se antes, ao nível das organizações, já se tinha sentido (e continua a sentir-se) o impacto, positivo e negativo, das novas tecnologias no processo e na organização do trabalho, resultando vastas vezes na supressão de mão de obra ou na sua requalificação, hoje em dia, já não é apenas a componente operacional que está em causa. É a própria natureza da actividade laboral, que está em causa.
Através do que se convencionou chamar-se de "processo de digitalização" da nossa sociedade, têm-se desenvolvido uma série de transformações na forma e na natureza em como os trabalhadores, os indivíduos, prestam a actividade produtiva – de natureza laboral ou não – de que necessitam para sobreviver.
Tal significa que, a utilização das novas tecnologias de informação e comunicação, (NTIC) como mediadoras da actividade produtiva dos seres humanos, surge imparável e inexorável.
Se atentarmos no conteúdo do que a União Europeia apelida de "Agenda Digital", constatamos que os poderes de Bruxelas, cada vez mais alinhados com os interesses das grandes corporações, olham para esta transformação de forma entusiasta, quiçá efusiva, mal disfarçadas por alguma preocupação face aos efeitos que o processo de "Digitalização" possa significar para a actual estrutura e princípios das sociedades Europeias contemporâneas.
II – As "organizações" digitais
Efectivamente, proliferam cada vez mais plataformas informáticas, mediadoras de prestação de actividade (nem sempre laboral). Alguns exemplos, que analisámos, destas plataformas, são:
- UBER – Plataforma que coloca em contacto, pessoas que dispõem de automóvel e pretendam transportar clientes em troca de um pagamento, determinado em função dos valores de mercado;
- Amazon Mechanical Turks – a Amazon caracteriza-a como um mercado on-line de "trabalho" mediante pedido (on demmand), fazendo a ligação directa entre o cliente e o "trabalhador", podendo este ser pago com vales de compras (vouchers) da própria Amazon;
- Crowdsorcing – uma plataforma que junta grupos de pessoas indefinidas chamadas de "cloudworkers" (trabalhadores em nuvem) e que todas juntas, desenvolvem uma tarefa, cada uma desenvolvendo a parte de que se sente capaz. Podem ser tarefas complexas como escrever o código de programação de uma aplicação informática, um texto sobre um determinado assunto ou a recolha e tratamento de inquéritos on-line. Cada um recebe o pagamento pela parte que efectuou;
- Indeed – plataforma de recrutamento de trabalhadores, principalmente trabalho temporário e contratos como "horário zero" (zero hour). O contrato a horário zero, é um contrato de trabalho, temporário, de duração muito reduzida e indeterminada. Ou seja, o trabalhador é contratado para trabalhar, mas sem horário fixo atribuído, o seu horário diário varia em função das ofertas diárias que vão aparecendo para a actividade que presta.
III – Trabalho digital – desregulação total?
Muitas outras plataformas existem. Contudo, as que analisámos, reúnem, em si, as características mais comuns neste tipo de actividades.
Passemos a caracterizar o tipo de relação que se estabelece:
- O vínculo é estabelecido entre o "trabalhador" e o cliente final, sendo a organização laboral apenas importante para colocar as partes em contacto e para desenvolver o processo burocrático subsequente;
- O vínculo laboral é estabelecido para cada tarefa;
- Não existe horário de trabalho, dependendo este das possibilidades/disponibilidades e capacidades individuais;
- O valor da remuneração varia segundo a quantidade de tarefas desenvolvidas e do seu valor de mercado, e não em função do tempo despendido como nos contratos de trabalho tradicionais;
- A responsabilidade pelo processo de trabalho é da total responsabilidade do prestador da actividade;
- As ferramentas e meios de trabalho pertencem, igualmente, ao prestador da actividade;
- O local é da responsabilidade, igualmente, do prestador da actividade;
- O valor, duração e estabilidade da actividade depende de critérios de mercado.
IV – O Desenvolvimento tecnológico e a humanização do trabalho
Diz a Lei 102/2009 que transpõe a Directiva Comunitária 89/391/CEE, que estabelece o Regime de jurídico da promoção da Segurança e Saúde no Trabalho, num dos seus princípios fundamentais que: "O desenvolvimento tecnológico deve promover a humanização do trabalho".
Nota: Não vamos também discutir se o tipo de actividade aqui relatado constitui ou não o que definimos como sendo "trabalho". O que sabemos é que, nuns casos sim, noutros não. Por exemplo, na Inglaterra, a recruta de trabalhadores com "horário zero" é feita, em muitas situações, através de plataformas on-line como o Indeed.
Seja para recrutamento de trabalhadores e preenchimento de vagas de emprego, seja para actividades à medida e mediante pedido, cada vez mais, se torna difícil fazer a distinção entre o que é ou não é trabalho, em sentido tradicional. Ora, em qualquer das situações, estamos a falar de pessoas que desenvolvem uma actividade remunerada, da qual dependem para sobreviver, sendo integradas numa organização alheia (mesmo que meramente instrumental) para a poderem desenvolver.
V – Quando a tecnologia é utilizada para desumanizar
O facto que salta à vista é que, a concepção que parece constituir o "jardim do Éden" do pensamento neo-liberal para o trabalho – tal o nível de desregulação laboral a que chega – utiliza a tecnologia, não para humanizar o trabalho e promover melhores condições de trabalho, mas para o contrário, precisamente para desregular e desumanizar. Não restam dúvidas de que, são traços característicos de muitas destas plataformas que:
- A responsabilidade da entidade patronal pelas condições infra-estruturais em que o trabalho é prestado é, integralmente, transferida para o trabalhador;
A entidade responsável pela organização da actividade não tem qualquer responsabilidade quanto às condições de habitabilidade do local de trabalho, estando isenta de todas as obrigações relacionadas com a Infra-estrutura: desde planos de emergência e evacuação ou primeiros socorros; sinalização; ventilação, luminosidade; espaço útil; estruturas sociais de apoio ao trabalhador...
- A responsabilidade pela adequação e segurança dos meios de trabalho é transferida para o trabalhador;
A entidade organizadora da actividade deixa de ter de estar preocupada com a qualidade e adequação dos equipamentos de trabalho, a sua instalação e funcionamento, estando isenta da verificação de obrigações como: ruído; sinalização dos equipamentos; poluição da atmosfera laboral; integridade do equipamento; manutenção, etc.
- A responsabilidade pela "sustentabilidade humana" e adequação dos horários e ritmos de trabalho, é transferida para o trabalhador;
O horário, a carga mental e física despendidas, a gestão do cansaço, o sono, a alimentação e os espaços de descanso, em geral (incluindo férias, feriados...), ficam todos sob responsabilidade do trabalhador. Esta situação é importante, inclusivamente, para as situações de "Horário zero", uma vez que o trabalhador é que gere a quantidade de contratos "horário zero" que está disposto a celebrar – isto é, claro, se eles lhe forem propostos.
- A responsabilidade pela conciliação vida privada/trabalho, riscos psicossociais e factores organizacionais, passa toda para o trabalhador;
É o trabalhador que gere a relação temporal e espacial trabalho/vida pessoal, tal como a gestão do stresse laboral, etc...
Esta última característica, por exemplo, até poderia ser vista como uma coisa boa. Contudo, há outra característica comum neste tipo de actividades que deita por terra qualquer possibilidade de gestão humanizada destes factores:
- O baixo preço destas actividades;
- A extrema competitividade no acesso a estas actividades (estima-se que cerca de 1,3 mil milhões de seres humanos já trabalhem através destas plataformas);
- Os custos com o processo são da responsabilidade do "trabalhador".
As a Mechanical Turk Worker you: Can work from home Choose your own work hours Get paid for doing good work Anúncio publicado no site da Amazon
Ora, estes factores económicos, destronam toda a possibilidade de humanização, uma vez que, nestas actividades, grande parte do valor acrescentado é transferido para o cliente, empresa ou indivíduo, obrigando o trabalhador au subsequente aumento da carga de trabalho.
Em consequência, o que ganharia em "autonomia" de processo, perde em falta de autonomia económico-financeira, uma vez que está totalmente subordinado aos custos e ao baixo valor que aufere por cada tarefa.
VI – Digitalização vs. Condições de SST
O resultado desta digitalização desregulada em termos de segurança e saúde no trabalho é óbvio:
- Falta de sistema de segurança e saúde no trabalho que garanta a prevenção dos riscos profissionais
- Lacunas na avaliação de riscos e tomada de medidas de prevenção
- Falta de formação/informação/consulta sobre riscos profissionais
- Utilização do Dumping social como factor individual de competitividade
Por outro lado, o previsível aumento da carga de trabalho – mental e física – a que estas formas de organização obrigam, não deixará de produzir os seus efeitos na contracção de lesões músculo-esqueléticas, distúrbios mentais diversos, acidentes variados e doenças profissionais, em geral.
Tudo isto, com a agravante seguinte:
- A responsabilidade pela Reparação dos Acidentes e Doenças de foro laboral, passam, em grande medida (excepto no contrato de horário zero, no que concerne aos acidentes e algumas doenças) para a esfera do trabalhador.
Ou seja, neste tipo de actividades (incluindo o contrato em horário zero), o trabalhador sendo vítima de um acidente grave ou uma doença profissional, incapacitantes para o trabalho habitual, verá toda a sua capacidade de ganho em causa sem que receba qualquer compensação por isso, criando-se aqui um factor enormemente potenciador de exclusão social.
A utilização tecnologia, neste caso, está visivelmente alinhada com os interesses das grandes multinacionais, sendo utilizada, inclusive, como factor de aprofundamento da exploração dos trabalhadores.
Ora, e será que tem de ser assim? Claramente que não! A tecnologia em si é positiva, como qualquer coisa, pode ser utilizada para os fins errados.
Isto quer dizer que a tecnologia, neste caso, terá de ser utilizada para humanizar o trabalho e para libertar e emancipar a humanidade, e não para explorá-la ou submetê-la ainda mais.
Daí que seja fundamental a produção de legislação que enquadre, regule e limite este tipo de acções. Só assim será possível assumir a garantia de um trabalho mais saudável no futuro. A transformação das relações de trabalho não tem de implicar a sua desregulação! No interesse dos trabalhadores e da sociedade!